
por Max Tegmark e John Archibald
Wheeler
Ao completar cem
anos, a teoria quântica exibe um saldo de proezas
espetaculares e enigmas persistentes
"Daqui a poucos anos, praticamente todas as grandes
constantes da Física terão sido estimadas, e... a única
ocupação que restará aos homens de ciência será aumentar
em uma casa decimal a precisão das medidas." Essas
palavras traduzem um sentimento familiar ao século 21,
especialmente quando nos vem à memória toda a barulheira
sobre as proezas já realizadas. No entanto, elas foram
ditas em 1871. Seu autor: o físico e matemático escocês
James Clerk Maxwell, que as pronunciou em sua aula
inaugural na Universidade de Cambridge. Elas expressam o
sentimento da época (do qual, aliás, Maxwell
discordava). Três décadas mais tarde, no dia 14 de
dezembro de 1900, o físico alemão Max Plank anunciou sua
fórmula sobre o espectro da radiação do corpo negro:
estava aberto o caminho para a revolução quântica.
Este artigo é um panorama dos primeiros cem anos da
mecânica quântica, com especial atenção ao seu lado
misterioso, culminando com o debate atual sobre questões
que vão da computação e da consciência quânticas até
universos paralelos e a verdadeira natureza da realidade
física. Estamos virtualmente ignorando a assombrosa gama
de aplicações práticas e científicas respaldadas na
mecânica quântica: estima-se que, atualmente, 30% do PIB
americano dependa de invenções que só se tornaram
possíveis graças à mecânica quântica - dos
semicondutores dos chips de computador ao laser das
leitoras de CD e à ressonância magnética dos aparelhos
para produção de imagens dos hospitais. |
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Em 1871, os cientistas tinham boas razões para sentir-se
otimistas. A mecânica e a eletrodinâmica clássicas haviam sido o
combustível da revolução industrial. Parecia que suas equações
básicas poderiam descrever essencialmente todos os sistemas
físicos. Mas alguns detalhes irritantes teimavam em turvar
aquele belo quadro. Assim, as estimativas acerca do espectro da
luz emitida por um corpo incandescente não coincidiam com as
observações experimentais. Essa predição clássica foi chamada de
"catástrofe ultravioleta", porque, segundo ela, a exposição à
intensa radiação ultravioleta, acompanhada de raios X, de um
corpo incandescente deveria levar-nos à cegueira.
O desastre do
hidrogênio
Em seu estudo de 1900, Planck deduziu corretamente qual
era o espectro. A conclusão a que chegou, no entanto, era
baseada em uma suposição tão bizarra que ele mesmo se distanciou
dela alguns anos mais tarde: toda energia seria emitida apenas
em pacotes finitos, chamados "quanta". Essa estranha suposição
provou ser extremamente acertada. Em 1905, Albert Einstein deu
um passo adiante. Ao assumir que a radiação poderia transportar
energia somente em pacotes individuais, ou fótons, ele explicou
o efeito fotoelétrico, graças ao qual funcionam hoje as células
solares e os sensores de imagem das câmeras digitais.
A Física enfrentou um novo apuro em 1911. O físico
neozelandês Ernest Rutherford argumentou, de maneira
convincente, que os átomos eram constituídos por um núcleo
central carregado positivamente em torno do qual orbitavam os
elétrons - como se fossem sistemas solares em miniatura. Segundo
a teoria eletromagnética, porém, os elétrons em órbita emitiriam
radiação continuamente e se precipitariam sobre o núcleo em
cerca de um trilionésimo de segundo. É claro que já se sabia que
os átomos de hidrogênio eram fundamentalmente estáveis. Essa
discrepância, de fato, foi a pior falha quantitativa da história
da física: minimizou a vida do hidrogênio em aproximadamente 40
ordens de grandeza.
Em 1913, o dinamarquês Niels Bohr, que fora trabalhar com
Rutherford na Universidade de Manchester, Inglaterra, ofereceu
uma explicação que novamente utilizava o conceito de quantum.
Ele postulou que o momento angular do elétron só podia assumir
valores específicos, o que confinava a partícula em um conjunto
discreto de órbitas. O elétron só irradiava energia ao saltar de
uma órbita para outra de menor energia, emitindo um fóton. Como
um elétron na órbita mais próxima do núcleo não tinha nenhuma
órbita com menor energia para a qual saltar, ele formava um
átomo estável.
A teoria de Bohr dava conta ainda de muitas das linhas
espectrais do hidrogênio - as freqüências de luz específicas
emitidas pelos átomos excitados. E funcionava também para o
átomo de hélio, desde que fosse suprimido um de seus dois
elétrons. De volta a Copenhague, Bohr recebeu uma carta de
Rutherford, que lhe pedia para publicar os resultados de seus
experimentos. O dinamarquês respondeu que ninguém acreditaria
nele a não ser que explicasse o espectro de todos os elementos.
Ao que Rutherford replicou: Bohr, você explica o hidrogênio e o
hélio, e todo mundo vai acreditar no resto.
Apesar do sucesso inicial da idéia de quantum, os físicos
ainda não sabiam o que fazer com suas regras estranhas e
aparentemente ad hoc. Era como se não existisse nenhum princípio
condutor. Em 1923, o francês Louis de Broglie propôs uma
resposta em sua tese de doutorado: elétrons e outras partículas
atuavam como ondas estacionárias. Essas ondas, tais quais as
vibrações de uma corda de violão, só podiam ocorrer em certas
freqüências discretas (quantizadas). A idéia era tão fora do
comum que a banca examinadora pediu orientação fora de seu
círculo. Ao ser consultado, Einstein deu parecer favorável, e a
tese foi aceita.
Em novembro de 1925, o físico austríaco Erwin Schrödinger
presidiu um seminário em Zurique sobre o trabalho de De Broglie.
Quando terminou, o físico holandês Peter Debye perguntou-lhe: "O
senhor fala de onda, mas onde está a equação da onda?".
Schrödinger produziu então sua equação, a chave mestra de grande
parte da física moderna. Por volta da mesma época, os alemães
Max Born, Werner Heisenberg e Pascual Jordan chegaram a uma
formulação equivalente utilizando matrizes. Com essa poderosa
sustentação matemática, a teoria quântica fez progressos
explosivos. Em poucos anos, os físicos haviam explicado uma
grande quantidade de medições, inclusive o espectro de átomos
mais complicados e as propriedades das reações químicas.
Mas o que significava tudo aquilo? O que era aquela
quantidade, a "função de onda", descrita pela equação de
Schrödinger? Esse enigma central da mecânica quântica continua
sendo uma questão poderosa e controversa até os dias de hoje.
Born teve a intuição de que a função de onda deveria ser
interpretada em termos de probabilidades. Quando os físicos
experimentais medem a posição de um elétron, a probabilidade de
encontrá-lo em uma região determinada depende da magnitude da
função de onda nessa região. Essa interpretação concedia ao
acaso um papel fundamental nas leis da natureza. Einstein ficou
horrorizado com tal conclusão e expressou sua preferência por um
universo determinista na famosa frase "Não posso acreditar que
Deus jogue dados".
Gatos
estranhos e baralhos quânticos
Schrödinger também estava descontente. As funções de
onda podiam descrever combinações de diferentes estados - as
chamadas superposições. Um elétron, por exemplo, podia estar em
uma superposição de várias posições diferentes. Segundo ele, se
objetos microscópicos como os átomos podiam ficar em estranhas
superposições, objetos macroscópicos também podiam, porque eram
feitos de átomos. Como um exemplo barroco, ele descreveu o
famoso experimento mental no qual um dispositivo perverso mata
um gato caso um átomo radiativo se desintegre. Ao entrar em uma
superposição dos estados "não desintegrado" e "desintegrado", o
átomo radiativo produziria um gato que estaria simultaneamente
vivo e morto.
O quadro Baralho Quântico mostra uma variante mais simples
desse experimento mental. Pega-se uma carta de baralho com a
borda perfeitamente afiada e tenta-se equilibrá-la sobre a borda
em cima de uma mesa. De acordo com a física clássica, a carta
permanecerá, em princípio, equilibrada para sempre. Já de acordo
com a equação de Schrödinger, a carta cairá em poucos segundos,
mesmo que se faça o máximo para equilibrá-la - e cairá
simultaneamente para os dois lados, direito e esquerdo.
Quando se põe em prática esse experimento com uma carta
verdadeira, conclui-se que a física clássica está errada: a
carta cai mesmo. Mas o que se vê é que ela cai para a direita ou
para a esquerda, aparentemente ao acaso, e nunca para a direita
e para a esquerda ao mesmo tempo, como a equação de Schrödinger
quer nos fazer acreditar. Essa contradição enganosa é o próprio
cerne de um dos mistérios mais originais e duradouros da
mecânica quântica.
A interpretação de Copenhague da mecânica quântica, que
evoluiu a partir das discussões entre Bohr e Heisenberg no final
da década de 1920, aborda o mistério a partir do caráter
especial das observações ou medições. Enquanto a carta não é
observada, sua função de onda evolui segundo a equação de
Schrödinger: uma evolução contínua e uniforme, que em matemática
é chamada de "unitária", e que tem várias propriedades
interessantes. A evolução unitária produz a superposição segundo
a qual a carta cai para a esquerda e para a direita. No entanto,
o ato de observar a carta desencadeia uma mudança abrupta em sua
função de onda, chamada comumente de colapso: o observador vê a
carta em um estado clássico definido (com a face para cima ou
para baixo) e, a partir desse ponto, somente a parte
correspondente da função de onda sobrevive.É como se, com as
probabilidades determinadas pela função de onda, a natureza
escolhesse um estado ao acaso.
A interpretação de Copenhague produziu uma receita
extraordinariamente bem-sucedida para fazer cálculos que
descreviam com grande acuidade os dados experimentais, mas não
eliminou a suspeita de que alguma equação teria que dizer como e
quando o colapso da função de onda ocorria. Para muitos físicos,
a ausência dessa equação significava que havia algo
intrinsecamente errado com a mecânica quântica e que brevemente
ela seria substituída por uma teoria mais fundamental. Por isso,
em vez de debater as implicações ontológicas das equações, a
maioria dos físicos dedicou-se a suas várias e fascinantes
aplicações e aos diversos problemas prementes e ainda não
resolvidos da física nuclear.
Essa atitude pragmática foi um sucesso estrondoso. A
mecânica quântica mostrou-se de fato eficaz ao predizer a
antimatéria e entender a radioatividade (levando à energia
nuclear); ao dar conta do comportamento de alguns materiais,
como os semicondutores, e explicar a supercondutividade; ao
descrever interações como as que ocorrem entre a luz e a matéria
(levando à invenção do laser) e entre as ondas de rádio e o
núcleo (levando à produção de imagens por ressonância
magnética). Muitos sucessos da mecânica quântica envolvem sua
extensão, a teoria quântica do campo, que constitui o fundamento
da física das partículas elementares, desde sua origem até os
atuais experimentos de vanguarda relativos aos neutrinos, ao
bóson de Higgs e à supersimetria.
Mundos
múltiplos
Por volta dos anos cinqüenta, já era evidente que os
triunfos sucessivos da mecânica quântica não podiam ser frutos
de uma teoria improvisada e passageira. Assim, em meados da
década, o americano Hugh Everet III, então estudante da
Universidade de Princeton, decidiu rever o postulado do colapso
em sua tese de doutoramento. Ele levou a idéia quântica até o
limite, com a seguinte pergunta: "O que aconteceria se a
evolução temporal do universo inteiro fosse sempre unitária?"
Afinal, se a mecânica quântica for suficiente para descrever o
universo, então seu estado atual pode ser associado a uma função
de onda (uma função extraordinariamente complicada). No cenário
de Everett, essa função de onda evolui de forma determinista,
não deixando nenhum lugar para o misterioso colapso não-unitário
ou para Deus jogar seus dados.
Em vez de serem colapsadas pelas medições, as superposições
microscópicas se amplificariam rapidamente, até formarem
bizantinas superposições macroscópicas. E nossa carta de baralho
quântica estaria de fato em dois lugares ao mesmo tempo. Mais
ainda: a pessoa que estivesse olhando para a carta entraria numa
superposição de dois estados mentais diferentes, cada qual
percebendo um dos resultados. Se apostasse dinheiro no palpite
de que a carta cairia com a face voltada para cima, acabaria
numa superposição de sorriso e cara fechada, pois ganharia e
perderia a aposta simultaneamente.
Everett intuiu brilhantemente
que os observadores desse determinista, mas esquizofrênico,
mundo quântico poderiam perceber a velha e boa realidade com a
qual estamos familiarizados. Mais importante: eles perceberiam
uma aparente casualidade, que obedeceria a regras
probabilísticas perfeitamente definidas
O ponto de vista de Everett, formalmente chamado de
formulação do estado relativo, ficou conhecido como a
interpretação dos mundos múltiplos da mecânica quântica, porque
cada componente da superposição que constitui um observador
reconhece ou percebe o seu próprio mundo. Ao remover o postulado
do colapso quântico, esse ponto de vista simplifica a teoria
subjacente. Mas o preço que se paga pela simplicidade é a
conclusão de que essas percepções paralelas da realidade são
igualmente reais.
O trabalho de Everett foi ignorado por quase duas décadas.
Muitos físicos confiavam que haveria de surgir uma teoria
fundamental que mostrasse que o mundo era, afinal de contas,
clássico em certo sentido, sem esquisitices do tipo "um corpo
poder ocupar dois lugares ao mesmo tempo". Mas toda uma série de
novos experimentos iria pôr fim àquela expectativa.
Poderia essa aparente casualidade quântica ser substituída
por alguma espécie de quantidade desconhecida inerente às
partículas - as chamadas variáveis ocultas? O irlandês John
Stewart Bell, um teórico do CERN (o centro europeu de pesquisas
nucleares), mostrou que, nesse caso, certas quantidades, que
poderiam ser mensuradas em alguns experimentos difíceis,
divergiriam das predições da teoria quântica padrão. Após vários
anos, a tecnologia possibilitou aos pesquisadores realizar esses
experimentos e eliminar a possibilidade das variáveis ocultas.
O experimento de "escolha retardada", proposto por um de nós
(Wheeler) em 1978 e realizado com sucesso em 1984, demonstrou
mais uma característica quântica da realidade que desafia as
descrições clássicas: não apenas um fóton pode estar em dois
lugares ao mesmo tempo como também o experimentador pode
escolher, depois do acontecimento, se o fóton estava em dois
lugares ou somente em um.
O experimento simples das duas fendas (no qual luz ou
elétrons passam por duas fendas produzindo um padrão de
interferência), alçado pelo físico americano Richard Feynman à
posição de mãe de todos os efeitos quânticos, foi repetido com
sucesso utilizando objetos maiores: átomos, pequenas moléculas
e, mais recentemente, buckyballs (estruturas formadas por 60
átomos de carbono). Depois dessa proeza, o físico austríaco
Anton Zeilinger e seus colaboradores da Universidade de Viena,
Áustria, chegaram até a discutir a possibilidade de realizar
esse experimento com vírus. Em resumo, o veredicto da
experiência é: a esquisitice do mundo quântico é real, gostemos
disso ou não.
A censura quântica
O progresso experimental das últimas décadas foi
acompanhado de notáveis progressos na compreensão teórica. O
trabalho de Everett deixou sem resposta duas perguntas cruciais.
A primeira: se o mundo real tem superposições macroscópicas tão
bizarras, por que não as percebemos?
A resposta veio em 1970, por meio de um artigo seminal de
Heinz Dieter Zeh, da Universidade de Heidelberg, Alemanha. Ele
mostrou que a equação de Schrödinger dá origem a um tipo de
censura. Esse efeito ficou conhecido como não-coerência, porque
uma superposição ideal é tida como coerente. O conceito de
não-coerência foi estudado minuciosamente nas décadas seguintes
pelo cientista do laboratório de Los Alamos, Wojciech H. Zurek,
por Zeh e outros. Eles descobriram que as superposições
coerentes persistem somente enquanto permanecem secretas para o
resto do mundo. Nossa carta quântica derrubada está sempre
recebendo o impacto de enxeridos fótons e moléculas de ar, que
podem comprovar se a carta caiu para a direita ou para a
esquerda, destruindo dessa forma a superposição e tornando-a
inobservável (leia o quadro A não-coerência: como a quântica se
torna clássica).
É como se o ambiente desempenhasse o papel de observador,
causando o colapso da função de onda. Suponha que uma amiga sua
olhou a carta e não lhe disse para que lado ela caiu. Pela
interpretação de Copenhague, a medição dela colapsa a
superposição num resultado definido. E a descrição que você faz
da carta muda a superposição quântica para uma representação
clássica de sua ignorância quanto ao que ela viu. Falando de
forma imprecisa, os cálculos de não-coerência mostram que não é
necessário nenhum observador humano (ou o colapso explícito da
função de onda) para obter quase o mesmo efeito - uma simples
molécula de ar será suficiente. Para todos os fins práticos,
essa minúscula interação muda a superposição para a situação
clássica num abrir e fechar de olhos.
A teoria da não-coerência explica por que não vemos
rotineiramente superposições quânticas no mundo ao redor. Não é
por que a mecânica quântica deixe intrinsecamente de funcionar
para objetos maiores do que um determinado tamanho mágico. Na
verdade, é praticamente impossível manter objetos macroscópicos,
como gatos e cartas de baralho, isolados a uma distância que
impeça a não-coerência. Objetos microscópicos, ao contrário, são
mais facilmente isoláveis de seu ambiente e assim preservam o
comportamento quântico.
A segunda pergunta sem resposta no quadro de Everett é mais
sutil, porém igualmente importante. Que mecanismo seleciona os
estados clássicos (a face para cima ou para baixo de nossa carta
de baralho)? Considerados como estados quânticos abstratos, não
há nada de especial sobre eles, quando comparados às inúmeras
superposições possíveis de "cima" e "baixo" em várias
proporções. Por que então os mundos múltiplos se dividem
estritamente de acordo com a linha cima/baixo, como nos é
familiar, e nunca segundo nenhuma outra opção? A teoria da
não-coerência responde também a essa pergunta. Cálculos
mostraram que os estados clássicos do tipo "para cima" e "para
baixo" são exatamente os que mais resistem à não-coerência. Ou
seja, as interações com o ambiente deixariam intocadas as cartas
viradas para cima e para baixo, mas levariam qualquer outra
superposição para as alternativas clássicas.
Não-coerência
e cérebro
Os físicos têm a tradição de analisar o universo
dividindo-o em duas partes. Por exemplo, em termodinâmica, os
teóricos separam um corpo material de todo o meio que o circunda
(o "ambiente") e que provê as condições dominantes de pressão e
temperatura. Tradicionalmente, os físicos quânticos separam o
sistema quântico do aparato clássico de medição. Se a unicidade
e a não-coerência forem levadas a sério, então é instrutivo
dividir o universo em três partes, cada qual descrita por
estados quânticos: o objeto em questão, o ambiente e o sujeito
ou observador (leia o quadro A realidade dividida).
A não-coerência causada pela interação do ambiente com o
objeto ou com o observador garante que jamais percebamos
superposições quânticas de estados mentais. Mais ainda: o
cérebro humano está de tal modo ligado ao ambiente que a
não-coerência dos nossos neurônios ativos é inevitável e
essencialmente instantânea. Como Zeh enfatizou, essas conclusões
justificam a longa tradição dos livros didáticos de usar o
postulado do colapso da função de onda como uma receita
pragmática do tipo "cale a boca e calcule": compute as
probabilidades como se a função de onda entrasse em colapso
quando o objeto é observado. Ainda que, segundo Everett, a
função de onda tecnicamente nunca entre em colapso, os
estudiosos em geral concordam que a não-coerência produz um
efeito que tem toda a aparência e o cheiro de um colapso.
A descoberta da não-coerência, combinada com demonstrações
experimentais cada vez mais elaboradas da esquisitice quântica,
causou uma mudança considerável na perspectiva dos físicos. A
motivação principal para a introdução da idéia de colapso da
função de onda foi explicar por que certos experimentos
produziam resultados específicos e não estranhas superposições
de resultados. Agora, grande parte dessa motivação não existe
mais. E é também constrangedor o fato de ninguém ter apresentado
uma equação determinista e possível de ser testada que
especifique exatamente quando o misterioso colapso ocorre.
Uma pesquisa informal realizada em julho de 1999 durante uma
conferência de computação quântica no Instituto Isaac Newton em
Cambridge, Inglaterra, sugere que o ponto de vista dominante
está mudando. De 90 físicos entrevistados, apenas oito
declararam que sua concepção inclui explicitamente o colapso da
função de onda; 30 optaram pela "teoria dos mundos múltiplos" ou
de "histórias consistentes" (sem colapso nenhum) (grosso modo, a
abordagem das "histórias consistentes" analisa seqüências de
medições e coleta pacotes de resultados alternativos que
formariam uma "história" consistente para o observador). Mas o
quadro ainda não está completo: 50 pesquisadores escolheram a
alternativa "nenhuma das anteriores ou indeciso".
Uma confusão lingüística pode ter contribuído para esse
número elevado. Não é incomum que dois físicos aleguem professar
a interpretação de Copenhague, por exemplo, e discordem sobre o
que entendem por ela. Dito isso, a pesquisa sugeriu claramente
que já é tempo de atualizar os livros didáticos de física
quântica: apesar de esses livros, num capítulo inicial,
infalivelmente apresentarem o colapso não-unitário como um
postulado fundamental, a pesquisa mostrou que muitos físicos
atuais - pelo menos no campo ainda incipiente da computação
quântica - não levam a sério esse postulado. A noção de colapso
terá por muito tempo ainda grande utilidade como receita de
cálculo, mas vale a pena uma palavra de esclarecimento que
poupará os estudantes astutos de muitas horas de confusão: essa
noção talvez não seja um processo fundamental que viole a
equação de Schrödinger.
Prevendo o
futuro
Depois de cem anos de idéias quânticas, o que resta pela
frente? Que mistérios permanecem? Apesar de temas básicos da
ontologia e da natureza última da realidade sempre aparecerem em
discussões sobre como interpretar a mecânica quântica, a teoria
talvez seja só mais uma peça de um enorme quebra-cabeça. As
teorias podem ser grosseiramente organizadas como árvores
genealógicas, nas quais, pelo menos em princípio, cada ramo
deriva de um ramo superior mais fundamental. Quase no topo estão
a teoria geral da relatividade e a teoria quântica do campo; no
primeiro nível dos descendentes estão a teoria especial da
relatividade e a mecânica quântica; destas derivam o
eletromagnetismo, a mecânica clássica, a física atômica etc.;
disciplinas como a ciência da computação, a psicologia e a
medicina aparecem bem abaixo na linhagem.
Todas essas teorias têm dois componentes: equações
matemáticas e palavras que explicam como as equações se
relacionam com a observação experimental. A mecânica quântica,
conforme é geralmente apresentada nos livros didáticos, tem
ambos os componentes: algumas equações e três postulados
escritos em linguagem corrente. Em cada nível da hierarquia
teórica, novos conceitos (por exemplo, prótons, átomos, células,
organismos, culturas) são introduzidos, porque capturam
convenientemente a essência do que está sendo tratado sem
recorrer a teorias superiores. Grosseiramente falando, a
quantidade de equações por palavra diminui à medida que se
percorre a hierarquia em sentido descendente, ficando próxima de
zero em campos de muita aplicabilidade, como a medicina e a
sociologia. Em contraste, as teorias próximas do topo são
altamente matematizadas, e os físicos ainda lutam para
compreender os conceitos que estão codificados nessa matemática.
A finalidade última da física é descobrir o que é
jocosamente chamado de "teoria de tudo", da qual todo o resto
possa ser deduzido. Se essa teoria existir, ela ocupará o lugar
mais alto da árvore, indicando que tanto a relatividade geral
quanto a teoria quântica do campo poderiam derivar dela. Os
físicos sabem que está faltando alguma coisa no topo da árvore,
porque não temos uma teoria consistente que inclua tanto a
gravitação quanto a mecânica quântica, embora o universo
contenha ambos os fenômenos.
A teoria de tudo provavelmente não teria conceito algum,
pois do contrário teríamos que buscar uma explicação para esses
conceitos em alguma teoria ainda mais fundamental, o que nos
levaria a uma recessão infinita. Em outras palavras, essa teoria
teria que ser puramente matemática, sem explicações ou
postulados. Talvez um matemático infinitamente inteligente seja
capaz de derivar toda a árvore teórica apenas de equações,
deduzindo delas as propriedades do universo, de seus habitantes
e das percepções que eles têm do mundo.
Os primeiros cem anos da mecânica quântica proporcionaram
tecnologias poderosas e responderam a muitas perguntas. Mas os
físicos levantaram novas questões, tão importantes quanto as
pendentes na época do discurso inaugural de Maxwell em Cambridge
- questões referentes à gravitação quântica e à natureza última
da realidade. Se a história tem algo a nos ensinar, o século que
iniciamos deverá estar cheio de excitantes surpresas.
Baralhos
quânticos
Uma simples carta de baralho derrubada em princípio leva
ao mistério quântico
De acordo com a física quântica, uma carta de
baralho hipotética, perfeitamente equilibrada na borda,
cairá em duas direções ao mesmo tempo. Isso é conhecido
como superposição. A função de onda da carta de baralho
(em azul) muda contínua e uniformemente do estado de
equilíbrio (esquerda) para o misterioso estado final
(direita), em que a carta parece estar em dois lugares
ao mesmo tempo. Na prática, esse experimento é
impossível com uma carta de verdade. Mas situações
análogas foram demonstradas inúmeras vezes com elétrons,
átomos e objetos maiores. Entender o sentido dessas
superposições e por que nunca as vemos acontecer no
mundo cotidiano têm sido o grande mistério da mecânica
quântica. Por décadas, os físicos desenvolveram várias
idéias para resolver o mistério, entre elas as
interpretações rivais de Copenhague, dos mundos
múltiplos e da não-coerência.

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A
interpretação de Copenhague
Idéia: Observadores vêem um resultado
casual; a probabilidade é dada pela função de onda.
Vantagem: Um único resultado ocorre.
Ele coincide com o fenômeno observado.
Problema: É necessário que ocorra o
colapso da função de onda, mas nenhuma equação
especifica quando.
Quando se mede ou se observa uma superposição
quântica, o que se vê é uma das alternativas, ao acaso,
cujas probabilidades são controladas pela função de
onda. Suponhamos que uma pessoa aposte que a carta vai
cair com a face voltada para cima. Quando ela olhar para
a carta pela primeira vez, terá 50% de chance de ganhar
a aposta. Embora essa interpretação já tenha sido
pragmaticamente aceita há bastante tempo pelos físicos,
ela requer mudança abrupta ou colapso da função de onda,
violando a equação de Schrödinger.
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A
interpretação dos mundos múltiplos
Idéia: As superposições parecerão
mundos alternativos paralelos para seus habitantes.
Vantagem: A equação de Schrödinger
funciona sempre; as funções de onda nunca entram em
colapso

Problemas: A esquisitice da idéia; alguns enigmas
técnicos permanecem.
Se as funções de onda nunca entram em colapso,
a equação de Schrödinger prevê que, ao olhar a
superposição das cartas, o próprio observador entre numa
superposição de dois resultados possíveis: ganhando e
perdendo a aposta simultaneamente. As duas partes da
função total de onda (do observador mais a carta)
evoluem independentemente, qual dois mundos paralelos.
Se o experimento for repetido muitas vezes, as pessoas
da maior parte dos mundos paralelos verão a carta cair
com a face para cima, na metade das vezes,
aproximadamente. As cartas empilhadas à direita mostram
16 mundos resultantes de uma carta derrubada quatro
vezes.

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A
não-coerência: como a quântica se torna clássica
A incerteza de uma superposição quântica
(esquerda) é diferente da incerteza da probabilidade
clássica, como ocorre depois de um arremesso de moeda
(direita). Um objeto matemático chamado matriz de
densidade ilustra a diferença. A função de onda da carta
quântica corresponde à matriz de densidade de quatro
picos. Dois desses picos representam os 50 por cento de
probabilidade de cada resultado, "face para cima" ou
"face para baixo". Os outros dois picos indicam que
esses dois resultados podem ainda, em princípio,
interferir um com o outro. O estado quântico permanece
"coerente". A matriz de densidade referente ao arremesso
de moeda tem apenas os dois primeiros picos. Isso
convencionalmente significa que a moeda caiu de fato na
posição cara ou coroa, mas que não olhamos para ela
ainda.

A teoria da não-coerência revela que a mais ínfima
interação com o ambiente, seja com um simples fóton ou
uma molécula de gás, transforma rapidamente uma matriz
de densidade coerente em outra que, para todos os fins
práticos, representa as probabilidades clássicas, como
as do arremesso de moeda. A equação de Schrödinger
controla todo o processo.

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A realidade
dividida
É instrutivo dividir o universo em três
partes: o objeto sob consideração, o ambiente e o estado
quântico do observador ou sujeito. A equação de
Schrödinger, que governa o universo como um todo, pode
ser dividida em termos que descrevem a dinâmica interna
de cada um desses três subsistemas e termos que
descrevem as interações entre eles. Qualitativamente
esses termos têm efeitos muito diferentes.
O termo que mostra a dinâmica do objeto é
tipicamente o mais importante. Então, para representar o
que o objeto vai fazer, os teóricos geralmente começam
ignorando todos os outros termos. Com relação à nossa
carta quântica, sua dinâmica diz que ela cairá para os
dois lados, direito e esquerdo, simultaneamente, em
superposição. Quando nossa observadora olha a carta, a
interação sujeito-objeto estende a superposição ao seu
estado mental do sujeito, produzindo a superposição de
alegria e desapontamento pelo ganho e perda simultâneos
da aposta. A pessoa, no entanto, nunca percebe essa
superposição, porque a interação entre o objeto e o
ambiente (como, por exemplo, as moléculas de ar e os
fótons) provoca uma rápida "descoerência", que torna a
superposição inobservável.
Mesmo que ela pudesse isolar completamente a
carta do ambiente (por exemplo, realizando o experimento
em uma câmara de vácuo escura, no zero absoluto), isso
não faria diferença. Quando olhasse a carta, ao menos um
neurônio em seus nervos ópticos entraria numa
superposição dos estados "ativado" e "não-ativado" e
essa superposição seria "descoerenciada" em cerca de
10-20 de segundo, de acordo com cálculos recentes. Se os
complexos padrões de ativação dos neurônios em nosso
cérebro têm alguma coisa a ver com a consciência e a
maneira como formamos pensamentos e percepções, então a
"descoerência" de nossos neurônios garante que jamais
percebamos superposições quânticas de estados mentais.
Em essência, nossos cérebros enredam inextricavelmente o
sujeito e o ambiente, forçando em nós a não-coerência.
(M.T. e J.A.W.)

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Os autores
MAX TEGMARK e JOHN ARCHIBALD WHEELER discutiram
amplamente a mecânica quântica durante três anos e meio, período
em que Tegmark fez seu pós-doutorado no Instituto de Estudos
Avançados de Princeton, Nova Jérsei. Atualmente, Tegmark é
professor assistente de física da Universidade da Pensilvânia.
Wheeler é professor emérito de Princeton. Entre seus ex-alunos,
figuram Richard Feynman e Hugh Everett III (criador da
interpretação dos mundos múltiplos). Wheeler recebeu o prêmio
Wolf de Física de 1997, por seus trabalhos sobre reações
nucleares, mecânica quântica e buracos negros.
Em 1934 e 1935, teve o
privilégio de estudar física nuclear com o grupo de Niels Bohr,
em Copenhague. Ao chegar ao instituto, perguntou a um
trabalhador, que podava uma trepadeira que se alastrava muro
acima, onde poderia encontrar Niels Bohr. "Eu sou Niels Bohr", o
homem respondeu.
Os autores agradecem a Emily Bennet e Ken Ford pela
ajuda com um antigo manuscrito sobre o assunto aqui tratado, e a
Jeff Klien, Dieter Zeh e Wojciech H. Zurek por seus úteis
comentários.
> Beam Line, Special quantum century
issue, vol.30, nº 2, 2000. Disponível on-line no endereço
http://www.slac.stanford.edu/pubs/beamline/pdf/00ii.pdf
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