Em
1990, arqueologistas israelenses se depararam com um
quebra-cabeças:
o esqueleto de uma mulher que morrera há mais de 1600 anos e
que carregava, no seu ventre, o esqueleto de um feto. Junto
com os restos mortais de mãe e filha, os arqueologistas
encontraram grande quantidade de cinzas. Ao analisar no
laboratório, a surpresa: as cinzas continham traços de THC.
Várias especulações surgiram, sendo que uma delas era de que
a mulher havia fumado marijuana para aliviar a sua dor na
hora da morte.
Mas não é este o mérito da questão. O que merece destaque na
notícia acima é o fato de que o nome de uma substância
química foi utilizado sem causar nenhum espanto ao leitor:
THC é mais um exemplo de nomenclatura química que deixa o
meio acadêmico e se instala no senso comum da população. Mas
o que é o THC? O que faz com que milhões de jovens e adultos
passem boa parte de sua vida fumando maconha? O que esta
erva faz com nosso organismo? Para estas e outras perguntas,
QMCWEB apresenta as respostas.
Vamos começar pelo
6,6,9-trimetil-3-pentil-6H-dibenzo[b,d]piran-1-ol:
este é o nome IUPAC do THC, substância tóxica, cujo LD50 é
730 mg/kg via oral e 42 mg/kg se inalado. O principal
constituinte ativo da marijuana tem sido investigado desde
1899, mas a primeira isolação da forma pura do
d-9-tetrahidrocannabinol
somente ocorreu em 1964. Um ano mais tarde, químicos
obtiveram a forma sintética da droga. O THC é apenas um dos
vários cannabinóides
- compostos terpenóides (com estrutura similar aos terpenos,
como o limoneno) que ocorrem nos óleos essenciais de várias
plantas, tal como na cannabis. Nas plantas, as funções
destas substâncias estão relacionadas à produção de
vitaminas, esteróides e pigmentos. Também funcionam como
mecanimos de defesa contra os predadores, por interferirem
no sistema biológico dos animais que comem suas folhas. Os
cannabinóides são essencialmente moléculas apolares, com
baixa solubilidade em água - por isso são geralmente
administrados através de cigarros.
Arraste de vapor
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O baseado - que contém algo como 3 mg de THC -
funciona como numa destilação por arraste de vapor:
a fumaça quente, proveniente da combustão da erva na
ponta do cigarro, arrasta a fração volátil da erva
ao passar pela extensão do baseado, até chegar ao
pulmão do usuário. Com a utilização do bong (cachimbo-d'água),
as substâncias hidrossolúveis da fração volátil são
eliminadas. |
Embora seja o mais popular e o mais ativo, o THC não é o
único cannabinóide da marijuana com atividade fisiológica
nos humanos. Muitos outros também tem atividades, sendo
muitas vezes agonistas do THC. Estudos mostram que os
efeitos provocados pela administração do THC puro são muito
diversos daqueles sentidos no uso da marijuana.
Cabeça mais leve, taquicardia, secura da boca e da garganta,
vermelhidão dos olhos: os efeitos da maconha são clássicos e
conhecidos. A mãe logo
descobre que o filho andou fumando maconha apenas
observando alguns destes sintomas - associados à súbita
mudança de comportamento e de amigos, além do odor (maresia)
característicos.
Os efeitos da marijuana variam muito, dependendo da
qualidade da erva, da quantidade consumida, da forma de
consumo e da experiência do usuário. Os efeitos psicológicos
tendem a predominar sobre os fisiológicos. Resumidamente,
pode-se dizer que a maconha provoca uma leve euforia,
distorções espaço-temporais, alteração do humor,
taquicardia, dilatação dos vasos sanguíneos oculares, secura
da boca e tontura. Entretanto, doses mais elevadas podem vir
a provocar uma intoxicação aguda (raro com baseados, comum
com hashish). Neste caso, o usuário tem fortes alucinações
audio-visuais, ansiedade, depressão, reações paranóicas e
outras psicoses, além de incoordenação motora e desconforto
físico.
Estudos
têm mostrado que, mesmo em usuários crônicos, a retirada
súbita da droga não causa nenhum sintoma agudo, isto é, não
se observa nenhuma dependência física da droga. Entretanto,
o uso contínuo da marijuana pode dirigir o usuário a uma
habituação psicológica, caracterizando o vício.
Dentre as várias manifestações psicológicas da cannabis,
algumas são particularmente comuns: a
euforia e a hilariedade.
Logo nas primeiras tragadas do baseado, o usuário se sente
eufórico e mais susceptível a longas gargalhadas. Outro
fenômeno comum é a dislexia, ou seja, a dificuldade de
manter a concentração em um determinado assunto: a marijuana
parece perturbar o fluxo contínuo das idéias. Outro efeito
bastante conhecido é a perturbação da memória: indivíduos
que fumam maconha tendem a esquecer mais facilmente e,
também, apresetarem sérios problemas de memória a longo
prazo. Um fator positivo da marijuana, em relação a outros
narcóticos, e o aumento da sociabilidade do usuário e,
também, da pacificação provocada pela droga: a maconha
diminui a agressividade. Muitos usuários - sobretudo os
inexperientes - relatam vivenciar situações de medo, pânico
e ansiedade. Algumas vezes, ocorre a popular "síndrome da
morte iminente".
Sob o ponto de vista científico,
o álcool é extremamente mais
prejudicial e tóxico do que a marijuana. Existem
muito mais mortes associadas ao consumo de álcool do que ao
de marijuana. Os efeitos fisiológicos debilitadores são
muito mais intensos com o álcool do que com a marijuana. As
chances de intoxicação aguda são maiores com o álcool. Mas
isto, entretanto, não serve como uma desculpa para a
liberação do consumo da marijuana: deve ser visto como um
estímulo à proibição, também, do álcool, sob as mesmas
premissas. Sob o ponto de vista dos que defendem a
legalização da cannabis, a droga é um fraco alucinógeno, sem
comparação aos narcóticos opióides ou à cocaína. Para estes
grupos, a droga é uma válvula de escape para o stress da
população, uma forma de se atingir um bem-estar e não está
associada, de nenhuma forma, à violência: seria a proibição
e marginalização da droga a responsável pelas mortes
relacionadas ao tráfico.

Em Amsterdã, turistas lotam as praças públicas para
fumar os diversos tipos de cannabis disponíveis nos
bares, coffeshops e pubs da cidade. |
A marijuana se tornou uma droga ilegal - a nível
internacional - em 1925, durante a
International Opium
Convention. Em 1960, a maior parte dos países
ocidentais já havia estabelecido leis nacionais que proibiam
o uso e o consumo da marijuana, punindo os infratores com
fortes penas. Um dos primeiros paises a se tornar tolerante
à marijuana foi Netherland: em 1996 a legislatura de
Netherland tornou legal o consumo e o plantio (desde que
para consumo próprio) da marijuana. O resultado foi uma
avalanche de turistas que,
anualmente, lotam as praças e pubs de Amsterdã,
onde experimentam a liberdade absoluta para consumir
diversas qualidades de cannabis. Embora Netherland tenha
experimentado a liberação de outras drogas, foi somente a
marijuana que apresentou resultados toleráveis: hoje, o uso
de heroína, cocaína e outros narcóticos é proibido neste
país.

Em Seattle (Washington/US), anualmente ocorre a
tradicional Hempfest - onde o consumo e apologia às
drogas é totalmente liberado. |
Mais recentemente, outros paises da comunidade européia
passaram a rever suas
legislações relacionadas à cannabis. Swiss e
Portugal já aprovaram a liberação do consumo de marijuana,
enquanto que a venda continua proibida. Continuamente,
grupos debatem também a liberação em outros paises, como
Belgium e UK. Vários estados do US (Alaska, Arizona,
California, Colorado, Nevada, Oregon e Washington) aprovaram
leis liberando o uso medicinal da marijuana, contrariando a
legislação nacional.
Pode-se dizer que, em alguns anos, a legislação
internacional com respeito à cannabis esteja diferente.
Talvez a forte pressão de grupos organizados consigam a
liberação, ao menos, parcial do consumo de marijuana.
Entretanto, vale lembrar: no International Opium Convention,
am 1925, estavam na pauta para a proibição internacional
duas outras drogas muito conhecidas: o álcool e a nicotina.
Devido ao enorme poder das indústrias tabagistas e de
bebidas alcóolicas, estas duas drogas não foram banidas. A
classificação de lícita e ilícita, portanto, é meramente
baseada em argumentos
econômico-políticos.

Deu no Jornal!
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Neuropharmacology 40 (2001) 702–709
THC mata
neurônios!
Pesquisadores do Department of Physiology,
Trinity College, Ireland, realizaram um estudo
muito interessante com culturas de neurônios
expostos ao THC.
Um dos efeitos conhecidos da marijuana é a
debilitação da memória - principalmente a da memória
recente. No estudo, Veronica Campbell
descobriu que o THC induz os neurônios a mudanças
morfológicas degenerativas e à formação de corpos
apoptóticos - produtos da apoptose, isto é, morte
das células.
O grupo trabalhou com culturas de neurônios que
foram expostas a 3 preparações: um placebo de
controle, uma solução 5 mM
de THC e outra solução de mesma concentração de THC,
mas com a presença de AM251 - um antagonista ao THC.
Abaixo, QMCWEB apresenta alguns de seus resultados.

Esta figura mostra o número de
neurônios que sofrem apoptose em função do tempo de
exposição a uma solução 5 mM
de THC.
Estas duas microfotografias
indicam uma maior quantidade de células que sofreram
apoptose (células vermelhas) quando expostas ao THC.

Esta figura indica a ação
antagonista do AM251: o número de neurônios
degenerados diminui drasticamente na presença do
antagonista, mesmo que expostos à mesma solução de
THC.
Os autores indicam que seus resultados podem ser
útil para esclarescer o mecanismo da degeneração
cognitiva associado ao consumo de marijuana.

Deu no Jornal!
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Drug and Alcohol Dependence 64 (2001)
143–149
Etanol aumenta a
absorção do THC!
Muitas vezes o etanol e o THC são usados em
conjunto: é comum usuários beberem e fumarem
maconha ao mesmo tempo. Nestas ocasiões,
grande parte dos usuários experimentam os
efeitos da maconha de uma forma mais rápida
e intensa. Um grupo de cientistas do
Behavioral Psychopharmacology Research
Laboratory, na Harvard Medical School em
Belmont, MA/US, decidiu tirar esta história
a limpo: seu trabalho investiga a relação
entre o consumo de álcool e o nível
plasmático de THC, além de medir os efeitos
subjetivos da droga combinada com o etanol.
Seus resultados indicam claramente que o
álcool altera a farmacocinética da absorção
do THC. As figuras abaixo são alguns dos
resultados obtidos, num grupo de mais de 70
usuários.

O aumento da dose de etanol provoca um claro
aumento da concentração de THC - sobretudo
nos primeiros minutos após a inalação da
marijuana.

O tempo (subjetivo)
para que os usuários sintam os primeiros
efeitos do THC diminui drasticamente com o
consumo de etanol. Perceba que no caso do
baseado-placebo o tempo é praticametne o
mesmo com ou sem etanol.
O incremento da concentração de THC no
plasma sanguíneo - e a consequente
potencialização de seus efeitos podem ser a
causa da mistura etanol/THC ser tão popular
entre usuários, principalmente adolescentes.
Alternativamente, muitos usuários são apenas
oportunistas, isto é, fumam somente quando
estão em alguma festa e alguma outra pessoa
apresenta a droga. Nestes casos, o consumo
de etanol é frequentemente associado.
Este foi um dos primeiros trabalhos a lidar
com o sinergismo etanol/THC.

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Ácido Bórico
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O uso frequente de colírios
é prejudicial

Um dos efeitos colaterais indiretos do uso de
maconha ocorre nos olhos: os usuários, numa
tentativa de disfarçar os olhos vermelhos - causados
pela vasolidilação conjuntiva - colocam gotas
diárias de colírios. O Moura Brasil e o Lerin são as
marcas mais vendidas no país. Tanto, que o Moura
Brasil figura entre os 100 medicamentos mais
vendidos anualmente nas farmácias - e sem receita
médica.
O
Moura Brasil contém sulfato de zinco e ácido bórico,
dois compostos que provocam uma vasoconstricção
alérgica da conjuntiva. Outros colírios, como o
Lerin, possuem vasoconstrictores anfetamínicos, como
a nafazolina. Ambos são prejudiciais, a longo prazo,
para os olhos, podendo causar catarata, glaucoma e
cegueira. Além disso, colírios com nafazolina podem
vir a provocar dependência física.
Então, como dizia Raul, quem não tem colírio, usa
óculos escuro...

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